Menez
10 de março a 2 de outubro de 2022
Curadoria: Catarina Alfaro
O percurso vivencial de Menez (Lisboa, 1926-1995), a sua
afirmação enquanto pintora e o reconhecimento artístico que
alcançou em Portugal são um tanto invulgares. Tendo saído do país
com apenas dois anos por circunstâncias familiares, viveu em
diversas cidades do mundo, tendo a maior parte do seu percurso
escolar decorrido na Suíça. Regressa a Portugal com vinte anos, ao
que se segue uma estadia de dois anos nos EUA, especificamente em
Washington, D.C. Apesar de ter começado a pintar aos treze anos,
sem qualquer treino académico, Menez só faz da pintura uma ocupação
regular aos vinte e seis anos. A sua formação autodidata não é um
obstáculo para uma carreira de mais de 40 anos de prática artística
- não exclusivamente dedicada à pintura, tendo também executado
trabalhos de desenho, gravura, cerâmica, azulejo e tapeçaria - que
se consolida através das frequentes exposições individuais e
coletivas, bem acolhidas pela crítica de arte e por algumas das
mais notáveis personalidades da literatura. A recepção favorável da
sua obra é confirmada pela presença de trabalhos de sua autoria
tanto nas grandes coleções institucionais portuguesas (como serão
as do Millennium BCP e da Caixa Geral de Depósitos) como em
coleções privadas.
A originalidade e o difícil enquadramento estilístico da sua
pintura muito se devem à sua compreensão desta disciplina como um
processo de afirmação pessoal, capaz de transmitir a sua visão do
mundo.
Em 1954, expôs pela primeira vez um conjunto de guaches na
Galeria de Março. Essas obras são reveladoras do domínio dessa
técnica e integram aspetos formais e de composição que privilegiam
os valores lumínicos enquanto coordenadas determinantes na
construção do espaço - executado a partir de um jogo de ocultação e
revelação entre interior e exterior, entre abstração e figuração -
que permanecerão e definirão a sua obra. Os trabalhos do final da
década de 1960 acusam já, após a sua passagem por Londres (1964-65
e 1969) como bolseira da Fundação Gulbenkian, uma nova linha de
exploração figurativa, de maior definição formal. O desenvolvimento
da sua pintura nos anos 1970 é uma continuação desta "fantasia
formal", que imprime às suas obras uma densa e cada vez mais
intrincada volumetria cromática, onde se conjugam elementos
figurativos entre as formas abstratas, numa ambiguidade
inusitada.
Essa ambivalência é ultrapassada quando, já em meados dos anos
de 1980, em coerência com a evolução prévia do seu trabalho, Menez
distingue e torna visíveis figuras que ocupam um espaço na pintura
cenograficamente transformado. São cenas de interior, e grande
parte delas de ateliers, mas também de jardins, espaços sempre
fechados que comunicam invariavelmente com o exterior. Estas
pinturas de ateliers são o seu modo de "pintar a pintura".
Estranhamente familiares por parecerem tão próximas da realidade do
seu ambiente de trabalho - onde se encontram os potes de cerâmica
repletos de pincéis, os cavaletes, os livros abertos, as várias
telas em diferentes fases de execução -, estas obras são projeções
do seu imaginário, extensões topográficas do seu modo de "habitar"
o espaço dentro e fora da pintura. Recorrendo aos procedimentos
clássicos desta disciplina (tratamento da luz, recurso à perspetiva
na organização espacial), o seu espaço de trabalho transfigura-se
nas relações de ambiguidade que estabelece entre interior e
exterior. O atelier abre-se para o espaço exterior - um jardim ou a
janela que concentra o rio Tejo - através de espaços intermédios,
salas que se fragmentam em sequência, ou pelo efeito
desmultiplicador dos espelhos ou dos quadros dentro do quadro.
Neste espaço enigmático habitam num isolamento dramático as suas
figuras femininas, cuja gestualidade é, tal como a espacialidade,
encenada. Em algumas destas obras a própria pintora parece
representar-se como modelo, numa encenação do ato de pintar onde é
ela própria objeto da pintura. Não há aqui a possibilidade de uma
narrativa pessoal: estas protagonistas fazem parte de uma
composição cenográfica e são, por esta razão, irreais.
Numa das suas raras entrevistas, Menez afirmou: "O figurativo
tem a ver com uma coisa íntima, minha." Aceitar o silêncio das suas
obras, a absoluta imobilidade das suas figuras e a descontinuidade,
que por vezes dá lugar à sobreposição, temporal e espacial, onde
estas se inscrevem é a melhor forma de com elas nos relacionarmos.
Sob a fachada da familiaridade, revelam-se inacessíveis por estarem
distantes da aparência comum do mundo visível. Características que
sempre se afirmaram na sua obra.